Artigo

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2021, que determina a não caducidade dos direitos do locatário na venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca.

Alerta Legal nº158

O acórdão n.º 2/2021, do Supremo Tribunal de Justiça (“STJ”), publicado em Diário da República, no dia 5 de agosto de 2021, uniformiza e confirma a jurisprudência quanto à determinação da não caducidade dos direitos do locatário na venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca.

Este acórdão surgiu na sequência de um Recurso de Uniformização de Jurisprudência, interposto pela Autora do acórdão do STJ, datado de 27/11/2018 (doravante “Acórdão Recorrido”), por o mesmo se encontrar em evidente oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito, com jurisprudência emanada em acórdão proferido anteriormente por aquele mesmo tribunal, concretamente, o acórdão do STJ de 09/07/2015, da 6.ª Secção Cível do STJ (doravante o “Acórdão Fundamento”).  

A divergência dos acórdãos versa sobre a questão de saber se, com a venda judicial de um imóvel hipotecado que tenha sido dado de arrendamento a terceiro após o registo da referida hipoteca, caduca o direito do respetivo locatário, nos termos do n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil (“CC”), o qual determina que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo”.

O Acórdão Fundamento considera o supramencionado artigo aplicável por analogia, no sentido em que o contrato de arrendamento caduca com a venda executiva, uma vez que este constitui uma forma de ónus sobre o imóvel, limitador do direito de propriedade, garantido através da hipoteca anteriormente constituída e registada, tornando-se inoponível ao adquirente.

Determina o Acórdão Fundamento que, em sede de declaração de insolvência do devedor, o contrato de arrendamento de bem imóvel, com hipoteca registada em data anterior a tal declaração, caduca com a venda judicial, nos termos do artigo 824.º, n.º 2 do CC, uma vez que, não obstante o direito do arrendatário ter natureza pessoal, assume contornos que se assemelham aos dos direitos reais, aplicando-se o regime destes, mormente o supramencionado artigo, salientando que «pensamos como a quase generalidade dos autores, que esse direito tem natureza pessoal ou creditícia, mas tem contornos que se assemelham aos direitos reais em que o regime dos direitos reais se lhe aplica - cf. art. 1037.º, n.º 2 do Cód. Civil. As exigências de justiça e os interesses teleologicamente detetáveis no referido n.º 2 do art. 824.º apontam para a aplicação ao arrendamento do regime de caducidade neste último previsto”.

Em sentido diverso, no Acórdão Recorrido, o STJ entendeu que a letra do n.º 2, do artigo 824.º, do Código Civil, não se aplica, nem direta nem analogicamente ao arrendamento, enveredando pela natureza meramente creditícia ou obrigacional do direito do arrendatário, pelo que conclui que deveria ser mantido o contrato de arrendamento, sucedendo o credor hipotecário na posição de senhorio, nos termos do artigo 1057.º, do CC, “ O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”, ex vi o artigo 109.º, n.º 3, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (“CIRE”), que prevê que “A declaração de insolvência não suspende a execução de contrato de locação em que o insolvente seja locador (…)”.

Face ao exposto nos acórdãos supra identificados, o acórdão de Uniformização de Jurisprudência, relativamente ao thema decidendum salienta que:

i)               Enveredar pela subsunção da caducidade do contrato de arrendamento em sede de venda ocorrida na liquidação insolvencial, nos termos esgrimidos pelo Acórdão Fundamento, seria equiparar a relação locatícia existente, na perspetiva do locatário, a um direito real, porquanto o artigo 824.º, n.º 2 do CC refere-se apenas à extinção de direitos reais e, não também, de todos os direitos, reais e/ou obrigacionais, que incidam sobre a coisa transmitida;

ii)              O contrato de arrendamento, na sua estrutura, é um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, do qual decorre para o locador a obrigação de proporcionar ao locatário o gozo de um imóvel, temporariamente, mediante uma determinada retribuição, estando neste específico domínio adstrito ao princípio da tipicidade, pelo artigo 1306.º, do CC, o que afasta, à partida, qualquer possibilidade de analogia;

iii)            Essa tipicidade concreta mostra-se abrangida pela norma do artigo 824.º, n.º 2, do CC, a qual é clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento;

iv)            Ademais, nos termos dispostos no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, resulta a garantia para o arrendatário da manutenção do seu contrato de arrendamento, ex vi do disposto no artigo 1057.º do CC, sendo que esta norma específica faz afastar a aplicação do normativo inserto no artigo 824.º, n.º 2, do CC, por no mesmo não haver qualquer referência à ocorrência da caducidade relativamente aos direitos obrigacionais e, nestes, ao arrendamento, e por nas causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no artigo 1051.º do mesmo diploma legal, não consta a venda, quer em ação executiva, quer em liquidação em processo insolvencial;

v)              A circunstância de o imóvel, em venda, poder estar hipotecado, não inibe o proprietário de o arrendar, nem de o transmitir a terceiro com lucro, como deflui inequivocamente do disposto no artigo 695.º do CC, uma vez que hoje em dia a subsistência do direito do arrendatário depende da subsistência de um contrato, que o senhorio pode extinguir por sua vontade unilateral, por via de oposição à renovação, denúncia e/ou resolução;

Face ao exposto, concluí o STJ que “Estando o regime da transmissibilidade do arrendamento perfeitamente enquadrado no preceituado no artigo 1057.º do CCivil, para onde nos remete, além do mais, o disposto no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, dúvidas não subsistem de que a tais normativos é estranho o regime prevenido no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, pelo que, inexiste qualquer lacuna carecida de integração analógica”, pelo que “[A] fundamentação e conclusão sustentada, sob um manto de interpretação normativa, nunca poderia derrogar uma norma excepcional do CIRE, a constante daquele n.º 3 do artigo 109.º, levando por arrasto o que se predispõe no artigo 1057.º do CCivil, em frontal colisão com os deveres que sobre nós impendem, enquanto julgadores, de estrita obediência à Lei, decorrentes do artigo 8.º do CCivil e 203.º da CRPortuguesa”.

Assim “Os direitos de garantia e os direitos reais, nada têm a ver com os direitos obrigacionais, onde se inclui o arrendamento, não se podendo, sem mais, concluir que aqueles podem abarcar este, (…) A alienação da coisa locada no processo de insolvência não priva o locatário dos direitos que lhe são reconhecidos pela lei civil em tal circunstância, o que sempre faria afastar qualquer interpretação extensiva ou analógica”.

Neste sentido, o acórdão de uniformização de jurisprudência confirma o Acórdão Recorrido, mantida a posição e decisão aí sustentada, determinando a não caducidade dos direitos do locatário na venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca.

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